Das estrelas à criação de gentes


O trabalho de Jannayna Reghini investe na produção artística dos autóctones brasileiros, com um viés contemporâneo, explorando sua diversidade estética, filosófica e cultural. Buscando desenvolver uma linguagem própria, ela descortina a visibilidade dos traços, desenhos, pintura corporal, cerâmica etc. dessas etnias em sua expansão ao universo artístico contemporâneo.

 

É admirável o respeito desta artista por uma cultura que não seria a sua. Embora tenha claro a herança dos povos originários como constituinte de suas raízes, sente receio de trair esse universo pela distância entre essa ancestralidade e ela própria. Mas, ao refletir sobre isso, percebe que essas culturas estão mais presentes do que imagina. Ela credita a maior parte dos traços genéticos da nossa ancestralidade africana e indígena às mulheres, já que elas foram subjugadas, enquanto os homens eram sumariamente eliminados. Mesmo em situações sofridas, elas são guardiães da memória. Seu trabalho promove reflexões sobre a arte indígena florescendo no sistema artístico chamado erudito.

 

Janna, como é conhecida, mergulha com paixão nas diversas etnias (Kadiweu, Waiãpi, Guarani, Asurini e Karajá, entre tantas outras) e procura resistir aos seus encantos para não mimetizar seus grafismos. Pesquisou as diferentes pinturas corporais, seus significados, funções e rituais. Passeia pelos pontilhados, pelas linhas paralelas, cruzadas, quebradas, nos arabescos, na associação de motivos, nos mitos e lendas que falam da natureza e da espiritualidade. Fala de como os deuses descem à terra e proseiam com os humanos. Encantou-se com a diversidade. Encontrou grafismos funcionais e não funcionais, que interpelam os mitos, na sua ordenação de poder ou no diálogo com o mundo dos outros (mortos ou inimigos); além daqueles que são essencialmente estéticos, elogio ao belo. É instigante indagar como algumas etnias partem da observação de casco de jabuti, cabeça de cágado, espinha de peixe, caracóis e borboletas para a elaboração de traços e cores, pinturas e desenhos espargidos em arabescos e repetições abstratas, que levam ao infinito.

 

Engana-se quem pensa que os indígenas produzem apenas pela necessidade prática. Nossos povos primeiros guardam uma relação profunda com os mitos, aproximando-se da natureza e do sobrenatural sem abandonar a relação intelectual com o mundo. Muitas vezes foram chamados de primitivos, no sentido pejorativo. Foi preciso aguardar os estudos etnológicos e antropológicos para um resgate de seus saberes. A arte ‘primitiva’, embora fortemente ligada ao mundo da ‘produção’, não tinha uma finalidade exterior nem mesmo religiosa, ao contrário, o primitivo cultivava a arte pelo prazer que esta lhe proporcionava (Grosse). É um equívoco reduzir primitivo a uma cultura restrita às suas necessidades orgânicas ou econômicas. Nesses povos, a arte não se separa da vida, não está no lugar de outra coisa, não é contemplação: a arte é uma atividade vital. Viviam intensamente o estado de indeterminação e gratuidade, por excelência o estado estético. São capazes de levar horas pintando motivos no corpo para uma dança efêmera, ou efetuar verdadeiras obras-primas em cerâmica que serão soltas num rio ou escondidas em grutas. A pintura do corpo desaparece num banho e as cerâmicas se despedem do criador. Algumas viajam no curso do rio, se perdem, naufragam; outras aportam em terras outras. Há ainda aquelas que são ocultas em grutas, protegendo o corpo de um morto. Muito da arte contemporânea se embrenha nessa transcendência. Impossível não concordar com Dubuffet de que “é preciso que os doutores façam o grande hara-kiri da inteligência”.

 

Janna explora o encontro da técnica com a estética: recorre a uma mistura de grafismos de várias etnias, que resulta em milhares de possibilidades. Explora a repetição e luta com as linhas retas. A régua não é o seu forte. Brinca com a resistência que encontra com as linhas retas, e essa provação deságua em linhas que teimam em ser tortas, como se fossem as curvas dos corpos ou da vida. As camadas de tinta que coloca são resultado dessa luta. Todos esses grafismos refletem uma relação milenar entre os seres humanos e a terra, expressando visões de mundo muito profundas. Há toda uma sabedoria escondida nesse fazer dos nossos povos primeiros que inspiram Janna Reghini.

 

Ela entendeu muito bem essa lição. Anseia que o seu trabalho (pinturas e peças) tornem presente no nosso cotidiano o manancial dos devaneios e experiências entre sagrado e profano do imaginário da arte indígena.

 

 

Maria José Justino

Curadora

 

 

 

 

 

Referências

 

DUBUFFET, Jean. L'homme du commun à l'ouvrage. Paris: Gallimard, 1973. p. 89.

GROSSE, Ernst. Los Comienzos del Arte. Buenos Aires: Editorial Impulso, 1944. p. 57.